Sondagens e risco: “Fazer uma sondagem é como abrir uma janela”
Ricardo Ferreira Reis é Diretor da CESOP Católica Sondagens. Doutorado em Gestão de Empresas pela Wharton School, Universidade da Pensilvânia, e licenciado em Economia pela Universidade do Porto, dá por si a trabalhar como estatístico e na área da ciência política. A pouco mais de um mês de umas eleições legislativas e a apenas uma semana do ato eleitoral nos Açores, que decorrem num contexto de grande imprevisibilidade, fala sobre o risco político e os desafios de quem faz sondagens nos dias que correm. “Fazer uma sondagem é como abrir uma janela. Podemos saber como está o tempo hoje, mas não significa que consigamos perceber as condições meteorológicas de amanhã.” Ricardo Reis foi o convidado do último Conselho Geral de Associados da APS.
*Artigo construído a partir de entrevista
O risco político é um risco significativo – não no sentido de ser grande ou pequeno, mas de ser relevante. Porque as decisões políticas determinam parâmetros de risco na vida das pessoas. A escolha de um Governo e a sua carga ideológica condicionam, por exemplo, o quadro de ação do Sistema Nacional de Saúde – algo que, desde logo, tem bastante impacto em cada um de nós, enquanto utentes do SNS; mas em muitos setores de atividade, incluindo o segurador, nomeadamente na área dos seguros de saúde. Um período de campanha eleitoral devia ser, antes de mais, um momento de discussão de políticas públicas, que determinam riscos políticos que podem, ou não, vir a concretizar-se. O problema é que estamos num contexto político global, longe de ser apenas português, em que as maiorias absolutas são cada vez mais raras – e, aparentemente, também não dão garantias de estabilidade, como vimos recentemente. Pelo que o desenho político que sai de um ato eleitoral é determinante. As sondagens acabam por servir como uma espécie de janela a partir da qual se constroem os cenários políticos que estão em cima da mesa. O que nos leva à eterna questão: quando fazemos sondagem não estamos a fazer projeção.
Se abrirmos uma janela agora para percebermos o tempo que fará amanhã, sentimos que, em princípio, poderá existir uma correlação entre as condições meteorológicas atuais e aquelas que se vão observar no dia que se segue, mas sabemos que há vários fatores que podem alterar o estado do tempo muito rapidamente. Extrapolando o exemplo para o contexto eleitoral, sabemos também que os agentes políticos e as circunstâncias sociais se alteram em poucos dias. De forma concreta, hoje, o cenário que temos, politicamente, não é o mesmo de há apenas uns dias, antes de as suspeitas de corrupção terem ditado a demissão do Governo Regional da Madeira, por exemplo. Num curto espaço de tempo, as condições variam. Por outro lado, quando olhamos para eleições mais recentes, ainda não conseguimos dizer se as alterações que identificámos foram condicionadas pela pandemia ou se se tornarão estruturais. É muito provável que a maior cadência destas alterações tenha vindo para ficar. Há 10 anos, com maior certeza, era possível abrir uma janela hoje e ter uma ideia aproximada do tempo que faria no dia seguinte e no outro. Hoje, cada vez menos é assim.
Entre os muitos fatores, alguns ainda pouco estudados, que estarão a contribuir para essa maior inconstância, destaca-se a maior atividade e capacidade de intervenção dos agentes políticos por novos canais. Com uma exposição mediática antes confinada aos canais de comunicação tradicionais, mais previsíveis e que, atuando como mediadores, transmitiam mensagens mais consistentes e coerentes, os partidos políticos entraram na lógica das redes sociais. Atuam de forma imediatista e sem a intermediação jornalística, comunicam de forma muito heterogénea e díspar com muitos eleitores, incluindo os mais jovens, que já não acedem a informação por outras vias e que são menos sensíveis a comportamentos estáveis na política. Isso acrescenta uma enorme camada de incerteza e de risco a todo o processo. Por outro lado, os eleitores mais velhos, nos últimos anos, fruto da pandemia, adotaram comportamentos que adicionam mais imprevisibilidade ao ato eleitoral, com muitos a fazerem depender a sua ida às urnas de questões de saúde pública, com receios do contágio. Tudo isto contribui para que, quando abrimos a janela, tenhamos hoje cada vez menos certezas do tempo que fará amanhã.
A isto, há que acrescentar aquilo a que chamamos a Kryptonite das sondagens: a abstenção. É algo que não conseguimos determinar quando estamos a fazer estes estudos. A abstenção é um fator preponderante na hora de fazer previsões, mas não é passível de ser identificado na inquirição, logo não é possível antecipar o seu impacto. Por outro lado, trata-se de um fenómeno dinâmico. Há alguns estudos, poucos, sobre essa matéria, que permitem dizer que não existem grandes transferências de voto em Portugal. O que há é a “ativação” alternada de determinadas famílias políticas, com eleitores que ou votam em determinado partido ou não votam de todo. Quando o partido A está na mó de baixo, desmobilizam e não votam; ao contrário dos eleitores do partido B que, até não tendo exercido o seu voto nas eleições anteriores, passam a estar mais mobilizados e vão, desta vez, às urnas. Na prática, há, de facto, uma transferência, de três a cinco pontos percentuais, do partido A para o partido B; mas, em termos efetivos, o que há é uma transferência do partido A para a abstenção; e uma transferência da abstenção para o partido B. Tem sido, aliás, ao serviço deste duplo movimento que os partidos têm reforçado as suas estratégias em campanha eleitoral: o objetivo já não é apenas mobilizar o seu eleitorado, como também desmobilizar o eleitorado oposto. Enquanto estudioso das sondagens, teria de analisar muitos mais atos eleitorais para conseguir entender cientificamente estes fenómenos – e, a bem da democracia, é bom que não tenhamos muitas mais eleições do que as previstas no calendário eleitoral, ainda que os últimos ciclos políticos estejam a ser muito mais instáveis e mais rápidos que o habitual.
Em termos de risco, e associado à imprevisibilidade, o ato eleitoral do próximo mês de março reveste-se de contornos próprios, cujos efeitos ainda estão por entender. Por um lado, de novembro, mês marcado pela queda do Governo, até março, distam quatro meses – um longo período pré-eleitoral, que inclusivamente teve vários picos de campanhas internas partidárias pelo meio; e que, no entanto, é surpreendentemente curto noutras dimensões. É bom lembrar que quase todos os principais partidos que concorrem às urnas mudaram de líder muito recentemente e, por isso, são inexperientes. É o caso da IL, do PCP, do Bloco, do PS, do PSD. Não tiveram tempo para se construírem como líderes aos olhos dos eleitores, que ainda não conhecem os seus tiques, os seus defeitos e as suas virtudes. Mesmo outros líderes mais consolidados, e estou a pensar no caso particular do PSD, provavelmente gostariam de ter tido mais tempo para afirmar a sua liderança e a sua persona eleitoral. Todos, sem grande exceção, foram obrigados a acelerar um conjunto de processos que ainda não dominam – com especial destaque para o PS, com a difícil missão de substituir muito rapidamente um líder carismático, ainda para mais nas circunstâncias que levaram à demissão de António Costa. Claramente, a escolha do partido foi a continuidade, escolhendo um líder que replica traços na senda de líderes anteriores e que, podemos dizer, tem aquilo a que se convencionou chamar de carisma – com os militantes socialistas, provavelmente, a interpretar as sondagens do momento e a procurar abrir uma janela, na sua eleição interna, que ajudasse a determinar o que acontecerá em março.
Quem trabalha com risco sabe que é preciso informação, informação, informação. Necessitamos de saber melhor o que está a acontecer. Ajuda saber que estamos a abrir a janela num dia de inverno e que, por isso, é expectável que se verifiquem determinadas condições em detrimento de outras. Há um conjunto de variáveis que são mais ou menos estáveis – como bem sabem as seguradoras na hora de calcular riscos. No caso da ciência política, não é diferente. E, contudo… Estamos num período de enorme instabilidade, que não apenas política: temos, por exemplo, uma Guerra na Europa, o que não acontecia nas últimas eleições legislativas, em janeiro de 2022, e coloca questões que são pertinentes no contexto da União Europeia (e fraturantes em termos ideológicos), incluindo a sua estratégia de militarização e defesa. No Médio Oriente, a situação é altamente volátil, em termos militares, mas também económicos, com a instabilidade a estender-se para as regiões mais a sul do Mar Vermelho, em zonas mais vulneráveis e voláteis, o que pode ter grande impacto nas rotas comerciais e levar a escaladas de preço. Para não falar nas muitas eleições que decorrem ao longo de 2024, com destaque para a grande polarização que reina nos Estados Unidos, com os americanos a irem às urnas em novembro; e a eminente eleição de um Parlamento Europeu que terá, entre os seus, um grupo de antieuropeístas bastante sonoros. Sim, há um conjunto de variáveis que são mais ou menos estáveis, mas a imprevisibilidade de outros tantos fatores pode fazer virar qualquer previsão.
A isto, acrescenta-se o fado português: as muitas suspeitas de comportamentos ilícitos e pouco éticos entre políticos, numa narrativa contínua nestes longos meses pré-eleição. De cada vez que há mais escândalo, ou pelo menos um indício de escândalo, os partidos mais radicalizados fazem valer a sua retórica, surgem com discursos e rostos zangados, a suspeita fica a pairar, sem esclarecimentos, provas cabais, encerramentos de casos. Não há leituras objetivas, tudo passa a ser espetáculo e entretenimento, servido aos eleitores. Se a justiça precisa da comunicação social para ser efetiva, estamos mal. E se a comunicação social precisa da justiça para interpretar os factos, estamos mal, sobretudo se deviam estar em segredo de justiça. Pelo meio, uma classe política cada vez mais polarizada, que não sabemos se vítima ou cúmplice destes episódios pouco dignificantes para a democracia portuguesa. Com isto, saem sempre vencedores aqueles que gritam “estão a ver, nós sempre dissemos que o sistema era assim”. E, no final, nós, aqueles que fazemos sondagens, com maiores dificuldades em conseguirmos captar aquele que é o espírito dos eleitores.
E, no fim, qual o poder de uma sondagem? Pode uma sondagem moldar intenções de voto futuras? A resposta é honesta: eu não sei. Se fosse um partido preferiria que uma sondagem me pusesse à frente, de forma destacada, e me afirmasse como líder político inato, inspirador e mobilizador? Ou sairia mais beneficiado se uma sondagem me colasse lá atrás e mobilizasse os meus eleitores? Qual o resultado de uma sondagem que ajuda mais a ganhar eleições? Não saberia dizer. Nos inquéritos pós-eleitorais que temos feito, os eleitores raramente indicam as sondagens como principal fator de mobilização do seu voto. Quem se dispõe a responder a estes inquéritos são pessoas que veem as sondagens como instrumento de análise; poucas serão as que respondem a sondagens com intenção de condicionar comportamentos. A minha resposta tem pouco de estatístico, mas é a possível. As pessoas que seriam condicionadas pelas sondagens não nos responderam anteriormente e dificilmente respondem a inquéritos subsequentes sobre a forma como as sondagens as condicionaram.
As sondagens abrem janelas, sim. Mas, entretanto, a vida vai acontecendo lá fora e o tempo vai mudando.