No rescaldo das eleições legislativas de 18 de maio, numa altura em que os comentadores e especialistas políticos ainda procuram razões para explicar o fim do regime bipartidário que marcou os primeiros 50 anos da democracia portuguesa, a Associação Portuguesa de Seguradores (APS) convidou para o seu Conselho Geral de Associados o Professor Universitário e especialista em Direito Constitucional, Miguel Poiares Maduro. Ex-Ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, atualmente comentador político na televisão pública portuguesa, traçou um diagnóstico incisivo da situação política nacional: “Vamos ter, muito provavelmente, estabilidade governativa pelo menos nos próximos dois anos”, que “não deve ser confundida com estabilidade política”.
As eleições recentes confirmaram uma tendência paradoxal: se, por um lado, o reforço do capital político da Aliança Democrática e a necessidade de reconstrução do Partido Socialista afastam o risco de eleições antecipadas, por outro, a realidade política mostra sinais de convulsão crescente. “Tivemos uma consolidação da fragmentação do nosso sistema político”, afirmou, apontando para o aumento do número de partidos representados, “assim como a radicalização do discurso parlamentar”, com a ascensão do partido Chega a segunda força política e ao papel de oposição. “Vamos ter discursos e debates cada vez mais violentos e que geram maior controvérsia”, antecipou.
Num sistema político tão disperso e polarizado, os incentivos à reforma desaparecem. “Podemos ter uma estabilidade paralisante”, em que o receio de pagar custos políticos por enfrentar temas estruturais — como a sustentabilidade do Estado Social — leva à manutenção do status quo dos partidos ditos tradicionais e à governação de curto prazo. “Proclamamos reformas, mas não fazemos reformas nenhumas”, criticou, acrescentando que temas fundamentais, como as pensões, tornaram-se assim “impossíveis de discutir politicamente”. A consequência é um ciclo vicioso: os partidos convencionais tornam-se gestores da paralisia, enquanto os partidos populistas capitalizam o desejo de rutura: “De um lado, status quo; do outro, revolução.”
É, pois, neste vazio que prosperam as forças populistas. Miguel Poiares Maduro abordou diretamente a ascensão do Chega, reconhecendo que o fenómeno resulta de múltiplas variáveis: conjunturais, como a perceção de insegurança ou a situação económica, e estruturais, como a crescente sensação de falta de representatividade política ou a alteração da sociologia do eleitorado, que deixa de se fazer na distinção tradicional entre esquerda/direita. “O populismo cresce porque as pessoas sentem que o sistema político já não as representa — nem quanto aos meios, nem quanto aos fins”.
Mas a explicação mais profunda está na própria transformação das democracias. “Estamos a assistir a três alterações fundamentais na forma como os sistemas políticos funcionam”, defendeu. É nessas três dimensões que, para o Professor de Direito, se encontra a chave para compreender o atual momento político.
1.Alteração da dimensão cognitiva: a ascensão da política da emoção
A forma como os cidadãos constroem as suas opiniões alterou-se significativamente. “Passámos de uma política dominada pelo racional para uma política cada vez mais dominada pela identificação emocional”, observou. Influenciadas pela lógica das redes sociais, as pessoas reagem com base em emoções rápidas, muitas vezes sem espaço para reflexão ou ponderação, com o desenho dos algoritmos digitais a favorecer conteúdos polarizadores, mais propensos a gerar reação do que compreensão. Essa “emocionalização” da política tem consequências diretas: torna mais difícil o diálogo construtivo e mais fácil a adesão a soluções simplistas. “A ideia de que tudo se resolve com um ‘nós tratamos disso’ é sedutora para muitos”, afirmou, referindo-se a programas políticos que prometem resolver todos os problemas com medidas fáceis, apesar da sua evidente inviabilidade.
2. Alteração da dimensão epistémica: a crise da verdade
Em convulsão está também a forma como a sociedade determina o que é verdade. “Hoje, a verdade deixou de ser determinada por especialistas ou pelo conhecimento técnico. Passou a ser medida pelo número de partilhas ou de likes nas redes sociais”. Uma lógica que mina os fundamentos do debate democrático, que depende de uma base factual mínima comum, já que a democracia não pode funcionar se não houver acordo sobre o que é um facto. O especialista chamou também a atenção para o papel das redes na disseminação de desinformação e manipulação, referindo-se ao uso de contas falsas utilizadas para amplificar determinadas mensagens, criando uma falsa sensação de apoio popular. “Isso reconstrói artificialmente a legitimidade de certas ideias”, apontou. Uma ideia passa ser legítima não porque seja verdade, mas porque é amplificada por um grande número de pessoas.
3. Alteração da dimensão deliberativa: o fim do diálogo
Em risco está também a capacidade de a sociedade discutir coletivamente e aceitar os resultados dessas discussões. “Cada vez mais o discurso público é apenas contraposição de pontos de vista, sem base racional comum”, lamentou Miguel Poiares Maduro. Essa ausência de espaço deliberativo conduz à radicalização e à deslegitimação do adversário político. “Se deixamos de reconhecer a legitimidade do outro lado, resta apenas a força. E isso é o início — e o fim — da democracia.”
Contexto internacional: outra revolução em marcha?
O atual panorama internacional aprofunda a instabilidade política que, atualmente, muitos países europeus estão a viver. “Se as democracias estão a mudar de forma profunda, é natural que o regime e a ordem internacional, produto dessas democracias, também mudem.” Para Poiares Maduro, o mundo caminha para uma ordem internacional de natureza transacional, em que “tudo é uma transação” e as normas jurídicas internacionais são “apenas mais um custo da negociação”. Este novo paradigma, impulsionado por transformações nas lideranças globais, substitui o multilateralismo pelo peso relativo de cada Estado: “As decisões radicam no peso de cada uma das partes” e não numa ideia de cooperação internacional e de bem maior. “Se as regras estão sujeitas à transação, a incerteza torna-se a regra”, concluiu.
Os riscos associados a esta instabilidade global são muitos no curto prazo. Conseguir ultrapassar esse cenário implica um grande desafio de longo prazo, “em que será necessário reconstruir as dimensões cognitivas, epistémicas e deliberativas da nossa vida democrática.” Apesar da profunda transformação política em curso, e ainda que encontre “poucas razões para o otimismo”, Miguel Poiares Maduro, não deixa de tentar “preservar a esperança”.