
Duas turmas de raparigas e rapazes do 12.º ano enchem a biblioteca da renovada Escola Secundária de Camões, no centro de Lisboa, edifício mítico da Praça José Fontana. Enquanto a sessão de apresentação do novo livro da Coleção “Seguros e Cidadania” da Associação Portuguesa de Seguradores (APS) não arranca, fazem o alarido próprio da sua juventude, indiferentes à vigia das imponentes e antigas estantes de livros que rodeiam a sala, a lembrar que, apesar do ar modernizado da escola (as obras de requalificação tinham sido inauguradas há poucos dias), há uma história de mais de um século que paira entre aquelas paredes. Quando o então Lyceu de Camões, projetado por Ventura Terra, foi inaugurado, em outubro de 1909, apenas rapazes podiam calcorrear aqueles corredores e frequentar as salas de aula. Só a partir do ano letivo de 1972/73 é que o estabelecimento de ensino passou a aceitar raparigas. Hoje, 115 anos depois, as vozes delas fazem-se ouvir tão alto como as deles, a lembrar que há tempos que já lá vão.
E, no entanto, ali estão eles, cerca de 50 alunos da disciplina de Ciência Política, para debater a igualdade de género. Ou, antes, devemos ainda falar sobre desigualdade de género? As respostas à questão podem ser muitas e diferentes. O tema continua a gerar discussões acesas – até porque em muitas geografias do mundo muitos milhões de raparigas e mulheres continuam a sobreviver em sistemas políticos, religiosos e culturais que as mantêm reféns de normas discriminatórias e, em vários casos, atentatórias dos mais básicos Direitos Humanos. A pensar nisso, a APS e as autoras da coleção, as consagradas escritoras infantojuvenis Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, decidiram dedicar o 11º livro da coleção “Seguros e Cidadania” a este debate: “Mulheres e Homens. Igualdade ou Desigualdade?”. Inserida no programa de literacia financeira da APS, a coleção centra-se em temas de Educação para a Cidadania procurando, junto das camadas mais jovens da população, suscitar a reflexão sobre várias questões que os jovens e as famílias podem enfrentar e ajuda a clarificar o papel do seguro no âmbito da educação financeira, mas também do seu valor social. E, ao mesmo tempo, alerta para a necessidade da prevenção e gestão dos riscos.
No debate em torno do tema da (des)igualdade de género, a que toda a sociedade e instituições devem ser chamadas, importa clarificar a forma como o setor segurador lida diariamente com estas matérias. No primeiro capítulo do livro, que analisa as diferenças de género na população mundial no Mundo e, mais concretamente, em Portugal, incluindo a maior esperança de vida das mulheres e a diferença de exposição aos riscos consoante o género, as autoras deixam bem patente a importância desta discussão para garantir o igual e justo acesso de todos aos seguros: “Nos seguros existe uma verdadeira regra de igualdade – ‘regra unissexo’ – que impede a diferenciação do prémio de seguro entre homens e mulheres. O exemplo dos seguros ajuda a compreender que, atendendo às diferenças biológicas, a igualdade de tratamento entre homens e mulheres tem de ser protegida por via legislativa”.
Diferenciar sim, discriminar não
Na sessão de lançamento da obra, que decorreu no passado dia 31 de outubro, estiveram presentes as autoras, ao lado de Ana Bacalhau, música portuguesa a quem a APS endereçou o convite para estar presente, numa conversa moderada por Joana Petiz, Diretora Editorial do SAPO.
No setor segurador, “há uma diferença vital entre diferenciar e discriminar”, começou por elaborar José Galamba de Oliveira, presidente da APS, perante a plateia de jovens, na breve intervenção inicial que fez. “Não é suposto um prémio de seguro ser diferente, consoante o género da pessoa que o tenha contratado. Mas há fatores de diferenciação, que têm a ver com o cálculo do risco. Por exemplo, no caso do seguro automóvel, quem tem mais acidentes vê a sua cobertura agravada. E isso é independente do género. Uma condutora ou um condutor, com o mesmo comportamento ao volante, têm o mesmo prémio”, explicou em traços simples o responsável.
Isabel Alçada referiu os motivos da parceria com a APS e a importância da discussão da igualdade de género neste âmbito: “Quando começámos a trabalhar com a APS, percebemos a função social do seguro, no sentido em que os seguros nos ajudam a todos ter um futuro menos inseguro. É objetivo desta coleção trazer para cima da mesa temas que nos fazem refletir e dialogar. É esse também o papel da formação para a Educação para a Cidadania, garantindo que, quando determinadas situações nos acontecem, já tivemos capacidade de aprofundar e elaborar sobre elas, podendo atuar de forma mais esclarecida. No caso dos seguros e da igualdade de género, sabendo que somos diferentes biologicamente, o quisemos perceber foi como essas diferenças não representam desigualdades de direitos. Não é aceitável que, num grupo, haja desigualdade de direitos. O que o setor segurador faz é garantir que, apesar das diferenças, não subsistem injustiças”, explicou Isabel Alçada.
Numa conversa aberta e pessoal, em diálogo com os alunos ali presentes, houve sobretudo partilha de experiências. Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada lembraram a sua própria experiência familiar, vindas de famílias onde, como tantas outras, o poder feminino era exercido dentro de casa, mas sobrava para os elementos masculinos as escolhas verdadeiramente livres. Felizmente, reconheceram, o cenário mudou, pelo menos em Portugal: “Hoje, as mulheres correm muito mais riscos do que antigamente. Por exemplo, vemos hoje imensas mulheres jornalistas em cenários de guerra, o que não se via antigamente. As mulheres correm mais riscos porque são mais livres”, referiu.
Ainda assim, há desigualdades que persistem. E em domínios onde, aparentemente, seria suposto estarem mais mitigadas. É o caso da música. Ana Bacalhau, vocalista da banda Deolinda e que, nos últimos anos, enveredou por uma carreira em nome próprio, falou das dificuldades que ainda enfrenta uma mulher que tem de liderar no palco perante o público, perante a sua banda e perante toda a equipa técnica e de produção. “Como mulher que é também líder – no palco, da banda, da equipa de produção – ainda sinto algumas dificuldades para me impor. Há um lado cultural muito forte, que não é fácil deixar para trás. Por isso é que, mesmo na música, existem papéis muito marcados em termos de género: as mulheres são sobretudo vocalistas, muito raramente as vemos enquanto guitarristas, bateristas, enquanto técnicas de som ou de luz”, apontou.
Por isso, para a artista, esta é uma discussão que vale a pena ter todos os dias. Tanto que, coincidindo com a celebração dos 50 anos do 25 de abril, decidiu lançar uma música que presta a devida homenagem a todas as mulheres que lutaram pela igualdade. E foi precisamente com o single “Por nos darem tanto”, que Ana Bacalhau encerrou a sessão de lançamento do livro da APS: “Já não preciso de autorização para viajar / Passaporte já não diz que a casa é o meu lugar / Posso abrir todas as contas que o meu salário der / Se houver dinheiro não importa se sou homem ou mulher / E o contracetivo já não pede a sua licença / Nascer mulher é uma bênção, não uma sentença (…)” / E a quem perdeu e a quem lutou e a quem rasgou o manto / Vai um abraço infinito por nos darem tanto / E eu não quero a tua proteção, quero o teu respeito / Quero fazer junto, lado a lado e fazer bem feito / E a quem perdeu e a quem lutou e a quem rasgou o manto / Vai um abraço infinito por nos darem tanto.”
Novo livro da APS, um livro de história com histórias
Ao longo de quase centena e meia de páginas, entre notas informativas e pequenas narrativas ficcionadas, o livro “Mulheres e Homens. Igualdade ou Desigualdade?” dá a conhecer a história da Humanidade – da Pré-História aos dias de hoje – traçando o lugar e o papel destinados à mulher na sua vida íntima e na esfera pessoal em cada uma das eras históricas. E se as descobertas de ossadas do período Paleolítico vieram demonstrar que homens e mulheres caçavam lado-a-lado, é provavelmente só no Neolítico, com a descoberta da agricultura e a consequente alteração do modelo de vida de então, que se começaram a estabelecer os modelos de atividade considerados próprios de cada género. Nos muitos milhares de anos que se se seguiram, a mulher foi sendo confinada à casa, sem voz política e social, enquanto o homem dominava a esfera pública. Durante muitos séculos, enquanto a desigualdade de direitos e de representação persistia, houve mulheres, que pelo seu carisma, inteligência e capacidade de liderança, conseguiram fazer frente à lei sálica e governar nações – em Portugal, foi o caso de D. Maria I. A lei manteve-se até finais do século XX, tendo sido a Suécia o primeiro país monárquico na Europa a revogá-la. No Reino Unido, isso só aconteceu já no século XXI, em 2012. Seria, na verdade, a partir da segunda metade do século XIX, quando passaram a “alimentar” a revolução industrial, que os primeiros movimentos feministas se deram a conhecer para reivindicar melhores condições de trabalho e o direito ao sufrágio. A Nova Zelândia foi o primeiro país a conceder o direito de voto às mulheres, em 1893. Em Portugal, por seu turno, uma mulher, médica e viúva, de seu nome Carolina Beatriz Ângelo, conseguiu fazer valer a sua condição de “chefe de família” para votar nas primeiras eleições republicadas, em 1911. Depois disso, a lei foi alterada para garantir que apenas os cidadãos portugueses do sexo masculino, com mais de 21 anos, que soubessem ler e escrever, e que fossem chefes de família, podiam exercer direito de voto. Só no ano de 1968 foi concedido o direito de voto às mulheres portuguesas, mas apenas às que sabiam e escrever. Só depois do 25 de abril de 1974 todos os cidadãos portugueses com mais de 18 anos passaram a ter direito de voto.
É, pois, pelas linhas do tempo que se vai “cosendo” a história da emancipação feminina e também o novo livro da APS, entre momentos narrativos e ocasiões para reflexão e debate (através de fichas de leitura, no final de cada capítulo, que podem ser usadas como recurso pedagógico no Ensino Básico e Secundário). A lembrar que a igualdade é um tema de todos e que cabe a cada um – seja homem ou mulher, seja jovem ou adulto – garantir que, todos os dias, se dá mais um passo rumo à igualdade de direitos e ao respeito pelas diferenças de cada.



