DONAS DE CASA
Há 51 anos, se o chefe de família apanhasse a sua mulher em flagrante adultério e a sua filha em flagrante corrupção, poderia, segundo a lei, matá-las. A punição para isto era o desterro por 6 meses da comarca onde vivia. O mesmo não se verificava no caso de ser a mulher a apanhar o homem ou o filho nas mesmas condições.
Como esta, muitas outras leis impediam a mulher de ser livre, quase impedindo-a de ser humana, tanto que pugnavam por estabelecer com afinco e empenho que mulher era propriedade de um homem, fosse o seu pai ou o seu marido.
Uma mulher não podia ter passaporte ou viajar sem autorização do seu pai ou marido, uma mulher não podia ter uma conta bancária em seu nome, seria em nome do seu marido, uma mulher não podia ser dona da sua casa, apenas e só “dona de casa”, que é como quem diz, trabalho não remunerado em favor do chefe de família que, livre de quaisquer responsabilidades domésticas, estava disponível para preencher o seu tempo com as actividades lúdicas que quisesse (ou eram permitidas na altura, nunca esquecendo que todos, homens e mulheres vivam sob uma ditadura).
50 anos nos separam, portanto, de um regime ferozmente misógino, que, felizmente, foi sendo substituído na lei por uma livre existência e pensamento femininos, mas que está presente ainda em muitas pessoas nos costumes e mentalidade. Prova de que este pensamento ainda não morreu são os números elevadíssimos de mulheres mortas em contexto de violência doméstica no nosso país, ou o ressurgimento de discursos que voltam a trazer a expressão “dona de casa” para o debate público, querendo revesti-la de uma aura de boas intenções para as mulheres que ficam com a gestão da casa e família a seu encargo (o chamado “rebranding”), mas sempre remetendo para os velhos e bafientos conceitos de mulher=cuidadora e homem=provedor que nortearam a sociedade antes do 25 de Abril.
Portugal vive hoje integrado num mundo (ocidental) que aparentemente se apresenta como mais igualitário, justo e livre relativamente às questões da igualdade de género, mas que não conseguiu ainda resolver alguns dos problemas mais profundos e enraizados em relação à verdadeira liberdade e autonomia femininas, vendo, pelo contrário, o regresso de algumas ideias retrógradas e reaccionárias partilhadas não apenas por uma camada populacional mais envelhecida, mas também, e de forma muito surpreendente e preocupante, por uma camada mais jovem da população.
O regresso de um arquétipo social definido em função do sexo biológico (leia-se, capacidade reprodutiva), tem trazido consigo uma crescente divisão entre mulheres jovens, tendencialmente mais liberais e homens jovens, tendencialmente mais conservadores. Tal não será certamente bom augúrio para um futuro que se queria construir como mais equitativo entre os géneros, estando mesmo em cima de muitas mesas políticas na Europa e Estados Unidos da América a regressão de algumas políticas neste sentido.
Para os de nós que não se revêem no colete demasiado apertado que pretende que todos vistamos de acordo com o sexo biológico com que nascemos, é imperativo que façamos ouvir a nossa voz e o nosso desacordo (repúdio, até), por um discurso profundamente limitador do papel naturalmente rico que a mulher pode trazer à sociedade.
Há que perceber o seguinte: se se conseguir subjugar 50% da população a uma subserviência financeira e legal (as mulheres serão, pelo menos, metade da população portuguesa e mundial), será depois muito mais fácil continuar a limitar direitos e liberdades a minorias e, de minoria em minoria, chegarão a todos os que não pertencerem à elite que domina.
Por isso é tão importante que todos, mulheres e homens, estejamos atentos e prontos a intervir, a debater, a rebater e a lutar para que os direitos conquistados não sejam revertidos e para que todos os seres humanos possam viver uma vida livre e plena, porque assim é a condição humana: livre e plena.




