De olhos postos no Espaço. Assim esteve o setor segurador ao longo da tarde em que decorreu a Conferência Anual da APS e que, em 2024, se dedicou a explorar “O Tempo do Espaço” e os desafios que a Humanidade (mas também a própria indústria) enfrenta nesta nova era espacial. No auditório principal do emblemático Planetário de Marinha, em Belém, Lisboa, no passado dia 14 de novembro, os representantes das principais seguradoras nacionais apertaram os cintos e, através das apresentações de um conjunto de oradores qualificados do setor espacial, deixaram a órbitra terrestre e viajaram pelo novo mundo de riscos e oportunidades que está a nascer com a conquista da chamada “última fronteira”.
“Hoje vivemos numa era em que a Ciência e a Tecnologia nos abrem novos horizontes e novas fronteiras, e onde o Espaço tem um papel cada vez mais importante e fundamental”, começou por lembrar o presidente da APS, José Galamba de Oliveira, na sua nota de boas-vindas, em que salientou que a escolha do tema da conferência consistiu também no lançamento de um desafio às seguradoras, no sentido de “perceber como é que podem ajudar a fazer crescer todo o ecossistema que se está a montar à volta” da exploração espacial, “algo que seguramente vamos ter de compreender como é que impacta as nossas vidas”.
Miguel Gonçalves, formador e comunicador de Ciência, foi o primeiro tripulante desta viagem pelo Espaço, propondo uma reflexão sobre “O Tempo dos Cosmos e o Desafio Tecnológico do Tempo Presente da Humanidade”. O orador, também conhecido pelas suas presenças habituais em programas televisivos de astronomia, começou por frisar que “sabemos muito pouco daquilo que é o nosso próprio Universo”, lembrando que “enquanto civilização, somos uma invenção muito recente do cosmos”. Tendo esta perspetiva como ponto de partida, Miguel Gonçalves salientou que muitas das “grandes preocupações atuais relacionadas com a indústria espacial são oportunidades de negócio para a indústria dos seguros”, apesar de “nós não fazermos a mínima ideia do que é feito 95% do Universo”.
Classificando o Espaço como uma “nova economia”, Miguel Gonçalves realçou em particular a falta de regulação que ainda marca este novo advento espacial, desde a gestão do tráfico espacial aos direitos de propriedade no Espaço, passando por questões como os riscos associados à exploração espacial ou a emergência de novas problemáticas, como o aumento exponencial do lixo em órbita.
Portugal pode ser um importante ponto de acesso ao Espaço
O tema da regulação foi, aliás, central na apresentação de Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa (“Portugal e o Espaço: oportunidades e riscos”), que sublinhou a necessidade de mais e melhor regulamentação, até porque “vivemos hoje uma new space race, uma nova corrida espacial”. Para o responsável, que fez questão de realçar que Portugal é um dos onze países do mundo que já tem uma Lei Espacial [aprovada no início de 2019], um dos grandes desafios que temos pela frente na chamada conquista do Espaço reside, precisamente, na necessidade de regulamentar e estabelecer regras para o setor aeroespacial, um processo que, inevitavelmente, só pode ser estabelecido através de uma cooperação internacional o mais alargada possível. Esta regulação tem de ser condição e pré-existir relativamente àquele que é o sonho mais-além da Humanidade: a possibilidade de o Homem colonizar o Espaço.
“O Espaço não é para todos, apresenta um ambiente muito agressivo”, pelo que só será “possível ser colonizado ou habitado pelo Homem se existir uma coisa para a qual precisamos de tempo: uma grande modificação e evolução genética da nossa parte”. Mas outras questões se levantam antes de lá chegarmos, destacou o Ricardo Conde, tal como os meios e processos de exploração sustentável do Espaço, atividade para a qual são necessárias novas “tecnologias, programas de investigação e apoios à educação e divulgação científica”. Ainda assim, o presidente da Agência Espacial Portuguesa, que é também engenheiro aeroespacial de formação, fez uma importante ressalva, alertando que “podemos ir a Marte dentro de 40 anos, mas, antes, precisamos de garantir aquele que será sempre o nosso ponto de partida, evitando a destruição da Terra”.
Para terminar a sua intervenção, o especialista recordou a rica história que Portugal já tem no setor aeroespacial, um trajeto que começou nos anos 60 do século passado com a Corticeira Amorim – ainda hoje fornecedora de cortiça para a NASA, um material essencial para o isolamento de naves e foguetões – e que segue o seu caminho “com a continuação da capacitação tecnológica nacional no setor aeroespacial, um papel que cabe à Agência Espacial Portuguesa”.
Neste contexto, Ricardo Conde defendeu a ideia de que Portugal pode e deve ser aceitar os desafios desta nova era espacial, apostando em novas tecnologias e na modernização das suas infraestruturas, nomeadamente considerando muito seriamente a possibilidade de se tornar num “ponto de retorno e acesso ao espaço, tirando vantagem da nossa geografia, em particular do arquipélago dos Açores” – recorde-se que, poucos dias antes da Conferência Anual da APS, a Agência Espacial Europeia tinha inaugurado a sua nova sede, na ilha da Santa Maria, localização que, em 2027, deverá ser o local de aterragem do voo inaugural do Space Rider, o novo veículo orbital reutilizável que está a ser desenvolvido pela Agência Espacial Europeia. “Portugal pode ter um ponto de retorno de missões espaciais e é isso que estamos a tentar fazer e que poderá ser uma realidade muito brevemente”, concluiu Ricardo Conde.
O Espaço oferece um novo horizonte, muito mais vasto e amplo, de oportunidades – incluindo à indústria seguradora
O ponto de observação da conferência da APS virou-se, depois, para a Terra e, mais especificamente, para o cluster português das indústrias de Aeronáutica, Espaço e Defesa – que hoje está organizado na AED Cluster Portugal, uma associação empresarial de mais de 140 entidades que têm atividade e/ou um papel de investigação nestes setores específicos, e que é presidida por José Neves, engenheiro aeroespacial e Diretor de Segurança Interna e Defesa na GMV. Dedicando a sua intervenção ao tema “A Cadeia de Valor Espacial”, o especialista frisou que “o ecossistema espacial em Portugal é um setor cheio de dinâmica” e que, como tal, “a indústria seguradora não pode ignorar este mercado”. Concretizando, o presidente da AED Cluster Portugal explicou que não se trata propriamente só da “questão de fazer um seguro para um satélite a ser enviado para o espaço, mas, acima de tudo, as seguradoras podem e devem tirar partido das tecnologias e das capacidades tecnológicas, como a inteligência artificial,” que estão a ser desenvolvidas por este cluster nacional e que são cada vez mais indispensáveis para uma área de negócio que trabalha na previsão, monitorização, gestão e avaliação de riscos diversos.
Neste sentido, José Neves alertou para a importância decisiva do País apostar na formação e qualificação técnicas, de forma a garantir que este setor de atividade tem acesso a “trabalhadores qualificados para trabalhar no chão da fábrica” em áreas como a espacial ou aeronáutica. Algo que, apontou, tem sido feito com sucesso em polos industriais nacionais como o Parque da Indústria Aeronáutica de Évora, onde operam empresas de referência da indústria aeronáutica como a Mecachrome e a Aernnova. E lembrou ainda que, “a nível europeu, este mercado representa cerca de 260 milhões de euros de faturação anual, envolvendo um milhão de postos de trabalho diretos.”
O CEiiA – Centre of Engineering and Product Development, um centro de engenharia e inovação português criador de soluções tecnológicas para os setores da mobilidade, aeronáutica, automóvel, naval e energia faz parte desse ecossistema internacional. Nos últimos anos, a sua Space Unit, área de atividade que se dedica ao desenvolvimento de soluções especiais, tem sido um motor de inovação “made in Portugal”. André Dias, que lidera unidade do Espaço do CEiiA e abordou o tema “Inovação e a Nova Economia do Espaço”, começou por vincar que nos encontramos numa nova fase de exploração do Espaço, o New Space, um novo contexto marcado pelo envolvimento direto de stakeholders privados, algo que advém “efetivamente de uma mudança cultural na perceção do risco por esta indústria”. Para reforçar a ideia, André Dias recordou que já existem setores com planos para construírem fábricas no espaço, como, por exemplo, as indústrias farmacêutica, de semicondutores ou a alimentar e nutrientes, o que se assume como um novo paradigma para o qual as seguradoras devem preparar-se e que irá, com toda a certeza, potenciar novos setores de atividade dentro da chamada Economia Espacial, incluindo, por exemplo, o turismo espacial.
Para o especialista, “será, sem dúvida, fundamental o envolvimento do setor privado na indústria do Espaço, quer como investidor, quer como cliente”, destacando, em particular, um novo horizonte de oportunidades, muito mais vasto, para as seguradoras nesta nova era espacial: “Onde há infraestruturas a serem colocadas e operadas, existe também todo um potencial enorme de negócio para uma indústria como a seguradora”. Segundo André Dias, “estamos a ocupar cada vez mais o Espaço e vamos fazê-lo de forma permanente. É incrível a quantidade de projetos, mais ou menos comerciais, que, neste momento, já existem, por exemplo, para termos estações espaciais em órbita para todo o tipo de finalidades, incluindo, naturalmente, também para o turismo” – uma nova realidade na qual vários atores já se estão a posicionar, como é o caso particular do Japão, país “que quer começar a criar produtos de seguros para o turismo espacial já para 2030”.
O Espaço e as potencialidades tecnológicas ao serviço das seguradoras
Importa, por isso, a indústria seguradora portuguesa não perder de vista este novo horizonte de oportunidades e posicionar-se, com ambição, nesta corrida. A mostrar que o setor está preparado e a aproveitar as oportunidades que a exploração do Espaço está a abrir, Ricardo Gonçalves, Diretor do Centro de Inteligência Artificial e Analytics da Fidelidade, deu nota do trabalho que o seu grupo tem feito nesta área, através de uma reflexão dedicada ao mote “Um Espaço Mais Seguro e Sustentável – contribuição dos dados para a prevenção, preparação, resposta e recuperação na gestão do risco de catástrofes”.
O responsável centrou a sua intervenção “na utilização prática das vantagens que a área espacial disponibiliza às seguradoras”, dando como exemplo concreto o caso da Fidelidade, seguradora que, em 2017, avançou com a criação de um Centro de Inteligência Artificial e Analytics, uma estrutura focada em competências digitais que utiliza tecnologias espaciais e inteligência artificial para melhorar a gestão de riscos e a resposta a eventos catastróficos; e que, mais tarde, em 2019, formou também uma equipa para usar location intelligence e sistemas de informação geográfica no apoio à atividade seguradora. Salientando que as novas tecnologias são ferramentas que podem ajudar “as seguradoras a serem mais proativas e ágeis” em áreas fundamentais como a prevenção, monitorização ou avaliação e gestão de risco, Ricardo Gonçalves explicou que a companhia de seguros utiliza imagens de satélite, em particular do programa europeu Copernicus, para monitorizar e antecipar o impacto de eventos extremos, como incêndios florestais ou furacões e, dessa forma, proteger o melhor possível os seus segurados.
Dando vários exemplos recentes, como os graves incêndios que afetaram a região Centro e Norte de Portugal em setembro de 2024, Ricardo Gonçalves salientou que o recurso a este tipo de tecnologias desenvolvidas e potenciadas pela indústria espacial permite às seguradoras “identificar, de forma proativa, clientes afetados e agir antes mesmo da abertura de sinistros”. Este tipo de análise inclui ainda fatores como a integração de algoritmos de inteligência artificial para mapear automaticamente unidades de risco e comparar o estado de propriedades antes e depois de catástrofes, reduzindo as possibilidades de fraudes, por exemplo. Da mesma forma, também permite gerir melhor os recursos internos das seguradoras: no caso de um incêndio que consumiu uma área relevante da serra de Monchique, no Algarve, a observação em tempo real da área ardida permitiu perceber que nenhum bem segurado estava em risco, pelo que não foi necessário as equipas da Fidelidade irem para o terreno.
O mapeamento de oportunidades de colaboração entre as seguradoras e o setor aeroespacial é, por isso, crucial. Duarte Oom, Scientific Project Officer do Joint Research Centre da Comissão Europeia, um engenheiro florestal de formação e especialista em proteção civil que, entretanto, se rendeu ao Espaço, veio dar nota de algumas “pontes” que o programa Copernicus já permitiu estabelecer. Abordando o tema “O projeto europeu Copernicus: como os satélites podem apoiar a gestão de emergências”, o responsável começou por explicar que o Copernicus é um programa europeu de observação da Terra gerido pela Comissão Europeia em colaboração com a Agência Espacial Europeia, Estados-Membros e outros parceiros: iniciado em 2012, integra satélites Sentinel e missões contributivas, disponibilizando dados para gestão de riscos em todas as fases das emergências – prevenção, preparação, resposta e recuperação –, disponível 24 horas por dia para fornecer informações a nível europeu e global. “Quando começámos, o objetivo foi exatamente o de cobrir todas as fases do ciclo de gestão de emergência, de risco, desde a preparação até à prevenção, passando pela resposta e neutralização e também a recuperação após o desastre, seja natural ou provocado pelo homem”, explicou.
Duarte Oom salientou que as principais componentes do Copernicus incluem o mapeamento sob pedido, o alerta precoce e a monitorização de desastres como cheias, incêndios florestais e secas, bem como avaliações da densidade populacional e do impacto nos edifícios, destacando serviços como o “On Demand Mapping, ativado quando entidades credenciadas de cada Estado-Membro da União Europeia necessitam de mapear uma área e/ou uma situação por satélite, e o Early Warning and Monitoring, um serviço de alerta precoce e monitorização em tempo real”.
E abordou ainda a colaboração entre o Copernicus e outras direções da Comissão Europeia, como a ECHO – Direção-Geral da Proteção Civil e das Operações de Ajuda Humanitária Europeias, organismo responsável pela proteção civil e ajuda humanitária no espaço europeu, salientando ainda a existência de outros mecanismos de resposta a desastres naturais, como o European Civil Protection Pool e o RescEU, que disponibilizam meios e recursos financiados pela Comissão Europeia.
Novos riscos e mais-além: o que o futuro reserva e o desafio dos seguros no Espaço
Da observação do planeta Terra, a Conferência Anual da APS rumou à sua última etapa, tripulada por Inês D’Ávila, engenheira aeroespacial e gestora dos programas de Transporte e Segurança Espacial da Agência Espacial Portuguesa, que lançou aos presentes um desafio: pensar “O futuro e os desafios da segurança e do transporte espaciais”.
A especialista começou por esclarecer que a questão da segurança espacial “divide-se em três áreas fundamentais: defesa planetária, meteorologia espacial e sustentabilidade no espaço”.
No âmbito da defesa planetária, Inês D’Ávila sinalizou a importância do acompanhamento de objetos próximos da Terra, de forma a prevenir potenciais impactos que se materializem em desastres naturais. Tal como temos de estar atentos ao que se passa na Terra, “temos, igualmente, de monitorizar as ameaças que vêm do Espaço e que podem impactar a Terra”, argumentou, destacando que esta é uma área em que “Portugal também tem trabalhado bastante através da Agência Espacial Portuguesa, dotando as nossas autoridades com as capacidades necessárias para saber como agir numa situação de crise”.
Na área da meteorologia espacial, a especialista apontou para os perigos associados às tempestades solares, que podem comprometer satélites, redes elétricas e sistemas de navegação. Daí a importância de missões como a VIGIO, que tem como objetivo monitorizar a atividade solar a partir de uma posição estratégica no Espaço, proporcionando mais tempo de preparação face a eventuais tempestades geomagnéticas.
Já relativamente à componente da sustentabilidade espacial, a responsável da Agência Espacial Europeia destacou a emergência do enorme desafio que o Espaço e a Humanidade enfrentam criado pelos chamados detritos orbitais, ou seja, o lixo espacial. “Este é, de facto, um problema: temos demasiados objetos no espaço e algumas das órbitas encontram-se congestionadas, existindo já dificuldades em gerir as colisões com todos os objetos que temos em órbita”, alertou, referindo que ainda que “não existe propriamente regulamentação internacional nesta área”, algo necessário para evitar maior congestionamento orbital. Como exemplo, lançou à audiência números esclarecedores: “Desde o início da era espacial foram lançados 19.590 objetos para o espaço, dos quais 13.230 ainda estão em órbita e, destes, 10.200 ainda em funcionamento… se eu quisesse ir à Lua não sei se conseguiria passar entre tanto tráfego”, afirmou.
Referindo-se diretamente ao potencial papel da indústria seguradora na chamada economia espacial, Inês D’Ávila fez questão de salientar que, em Portugal, através da Lei Espacial, está definida a obrigação de segurar objetos espaciais portugueses, uma realidade que, no entanto, não se verifica em muitos outros países. “Ao terem satélites no espaço que não estão segurados, podem criar danos” e, assim, originar situações muito complicadas de resolver.
Projetando o futuro, a especialista referiu ainda a importância de se apostar fortemente na sustentabilidade espacial, nomeadamente através de soluções que prolonguem a vida útil de satélites e de outros objetos espaciais, e promovendo o desenvolvimento de tecnologias de reabastecimento e reciclagem de materiais em órbita. “Nós já temos tantos objetos no Espaço. Em vez de continuarmos a enviar mais objetos, por que não tentamos aproveitar os que já lá estão e utilizar, se não a sua totalidade, partes deles e reciclar?”.
Perto do final desta sessão, o comunicador em Astronomia Miguel Gonçalves assumiu, de novo, os comandos da sessão do Planetário de Lisboa, para fazer uma breve súmula desta viagem. Numa aterragem suave, enalteceu a relevância de um encontro que juntou a indústria espacial, instituições públicas do setor e representantes da indústria dos seguros, e realçou a possibilidade de este encontro se constituir como epicentro para o tão necessário aprofundamento de colaborações promissoras e duradouras entre todas as partes envolvidas – em prol da enorme qualidade da competência nacional na criação de software e hardware para satélites e missões espaciais.
Miguel Gonçalves encerrou a Conferência Anual APS 2024 com uma reflexão poética, conectando a inteligência artificial à criatividade e desafiando as perceções tradicionais sobre os limites da tecnologia. Citando Antoine de Saint-Exupéry, aviador e escritor francês, enfatizou que “o objetivo não é prever o futuro, mas sim torná-lo possível”, numa referência ao potencial da simbiose entre o humano e o tecnológico na conquista e exploração do Espaço. O futuro da Humanidade, mas também da atividade seguradora, pode estar ao virar de uma estrela.