(DES)PROTEÇÃO DAS SOCIEDADES: PERSPETIVAS SOCIAIS E ECONÓMICAS
Miguel Monjardino, Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa
Temos, hoje, uma noção muito aguda de que estamos a viver um período de desequilíbrio do sistema. Já não estamos no domínio da avaliação de risco, estamos no domínio da incerteza, o que é diferente. Por isso, o período atual que o mundo atravessa é tão interessante – embora a perceção, sobretudo na sociedade, seja a de que estamos a viver um período bastante assustador. Como chegámos aqui?
O que proponho nesta sessão: que pensemos, não tanto no factual, mas sim em termos de trajetória do sistema, nomeadamente, a avaliação do fator ‘tempo’. Em momentos de grande perplexidade e de muitas dúvidas, como o que vivemos, a avaliação do fator tempo é muito diferente. Na Matemática, usa-se um termo que é o ponto de inflexão – o exato ponto a que chegamos nos momentos de grande perplexidade e de muitas dúvidas. Em que percebemos que algo de estrutural está a acontecer no sistema e não sabemos bem o que vai acontecer.
Só as pessoas nascidas por volta de 1960, ou antes, têm memória de um período histórico diferente. Olhando para esta sala, e vendo as pessoas que aqui estão na “casa” dos 40 até perto dos 50 anos, suspeito que a sua perplexidade seja maior do que aquelas que estão à beira dos 60 anos. Certamente que lidam com sentimentos de maior perplexidade e pânico. Porquê? Porque não têm memória de nenhum período de tamanha incerteza, cresceram e fizeram todo a sua carreira profissional num período de curta paz, como aquele que se sucedeu na Europa desde 1991.
Assim, se entrámos, de facto, num novo período de história – e o meu argumento é o de que, claramente, entrámos –, então estamos a falar concretamente de quê?
Este quadro [aponta para a imagem projetada do ecrã] é “O viajante sobre o mar de névoa”, de 1818, da autoria de Caspar David Friedrich. Nós somos aquele homem no alto da montanha. Eu diria que este é um grande quadro para os nossos dias e, mais concretamente, para o setor segurador. Eu gosto de pensar que ele está de olhos abertos a tentar contemplar o futuro, mas o problema dele, que é o meu e, penso, também o vosso, é o nevoeiro no vale. Nós queremos chegar ao lado de lá, mas para isso precisamos de atravessar o vale. E o vale tem muito, muito nevoeiro. O nosso problema hoje, no fim de contas, é perceber como descortinamos o caminho até chegarmos a um futuro mais promissor.
Sou fundamentalmente otimista em relação ao futuro, mas o que sugiro aqui é que os próximos anos vão ser muito complicados. Conceptualmente, estamos a viver um período muito parecido com o compreendido entre 1937-1941 e o vivido entre 1948-1962. Em ambos estes períodos históricos o elemento comum foi a construção de coligações contra os Estados Unidos da América e os seus aliados. Desde 2022, o que observamos é precisamente a emergência de uma nova coligação contra os Estados Unidos, contra a União Europeia e, no fim de contas, contra uma certa conceção do Mundo.
E é neste ponto que a avaliação do fator ‘tempo’ é crítica, porque tem leituras diferentes culturalmente, noções de risco e de oportunidade que são muito diferentes das nossas, ditas ocidentais. A invasão da Ucrânia por Vladimir Putin é, claramente, o produto de uma avaliação do fator tempo a dois níveis: primeiro, o Presidente da Rússia pensou que este era o momento certo e considerou que a União Europeia não reagiria; segundo, tratou-se de uma ação preventiva: “Se eu não fizer isto agora, daqui a cinco anos, terei perdido a Ucrânia para sempre.”
A dificuldade intelectual de racionalizarmos estes acontecimentos mais recentes tem a ver, para mim, com um conceito a que chamo de “curta paz”. Habituámo-nos a pensar o tempo de forma linear. Porém, temos de nos preparar para pensar de forma não linear. O que está fundamentalmente em causa – e é a grande dúvida – é perceber se estamos num ambiente de alta entropia ou baixa entropia. Simplificando: há ou não energia suficiente no sistema para conter e reformar a ordem internacional onde todos nós operamos? Eu gosto de pensar que ainda há. Mas também do ponto de vista de Vladimir Putin, Xi Jinping, Donald Trump e muitos outros, penso que já não há energia suficiente e, portanto, o sistema tem de ser destruído para criar algo de novo. E este é que é o grande combate político-económico que nós temos hoje à nossa frente.
Hoje em dia é que ninguém lê História, durante a curta paz que tivemos, de 30 anos, tirámos férias da História. E o que está a acontecer agora? Penso que a História está a voltar ao normal. Crescemos num período histórico altamente benéfico e pensámos genuinamente, o que é preocupante, que seria assim para sempre. Os eleitorados não estão preparados intelectualmente para o contexto que estamos a viver, nem os líderes políticos, porque são de uma determinada geração e estão obrigados a fazer um reset histórico enorme. Enquanto não aparecerem lideranças políticas que expliquem claramente às pessoas o que está a acontecer, viveremos um problema de adaptação à realidade. Vamos ter de fazer escolhas muito no passado mais recente.
A próxima década será muito turbulenta nas sociedades democráticas, uma vez que teremos de passar por um ajustamento a uma nova realidade, quer em termos domésticos, quer em termos internacionais. Será uma época intelectualmente muito desafiante: no espaço dos próximos 5 a 10 anos, os nossos adversários e inimigos terão que agir de forma decisiva. Até ao fim desta década, viveremos grandes pressões perigos. Se conseguirmos chegar ao início da década de 30 como estamos hoje, ótimo. Mas preparar-me-ia para essa próxima década: todos aqueles que se opõem ao atual modelo de ordem internacional ou que têm outro tipo de interesses vão pressionar-nos imenso para conseguir o que querem. E aqui, parte da dificuldade que nós vamos ter, prende-se com o capital intelectual das lideranças políticas. Estas estão impreparadas intelectualmente para o perigo que nós temos à nossa frente e com imensas dificuldades em explicar à sociedade o que provavelmente precisa de ser feito.
Concluindo, neste período aparecerão novos líderes políticos, novas lideranças políticas. Mas, voltando de novo à História, este é um tempo excecionalmente promissor para novos tribunos políticos emergirem com novas ideias e novas propostas – que é exatamente aquilo que estamos a ver. São tempos de enorme ruído, em que estes tribunos procuram acentuar o ruído e camuflar os sinais. Sinais: é exatamente isto que interessa a todo o setor dos seguros e resseguros. Mas o que interessa à maior parte da sociedade é o ruído político.
Paulo Portas, Ex-Vice-Primeiro-Ministro e Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros. Consultor de negócios.
Quem me conhece sabe que eu tenho uma manifesta confiança na natureza conservadora do setor segurador. Faz parte do mundo da prudência, não faz parte do mundo do atrevimento. E isso, não sendo o único valor necessário, é um valor essencial para as sociedades se equilibrarem.
Quero partilhar quatro ou cinco notas que me parecem importantes para estabelecer o racional dos tempos que vivemos. A primeira é a importância da imprevisibilidade. Nós já não estamos no domínio da análise de risco, estamos no domínio da incerteza, como disse o Miguel Monjardino. Basta olharmos para os últimos cinco anos, ou para os anos que passaram desde o início do século, para percebermos que estamos a viver um momento diferente. Nenhum dos fenómenos fundamentais que afetaram regiões, continentes ou o próprio planeta neste período foram previstos do ponto de vista da análise de risco.
Assistimos a uma epidemia nascida na Ásia, transformada em pandemia global. Quando o mundo saía de casa das inúmeras vagas dessa pandemia, eis que somos surpreendidos pela invasão da Ucrânia pela Rússia. A seguir, quando tínhamos estabilizado a avaliação e a convivência com os danos, sobretudo do ponto de vista geoeconómico, acontece o ataque do Hamas, um ator não estadual. Nada disto foi previsto como provável, nem sequer como possibilidade.
Agora, a vossa atenção para um segundo ponto, estritamente ocidental. É o Ocidente que se está a fragmentar e a polarizar, não o Oriente. Nós, no Ocidente, temos a mania de que o mundo não é redondo e somos manifestamente incapazes de olhar para o outro lado do mundo. O mundo não é europeu e está a deixar de ser Atlântico. No sentido geoeconómico, é essencialmente um mundo do Pacífico e da região Indo-Asiática, onde os Estados Unidos têm uma costa e a Europa não.
Junte-se a isto o facto de a Europa – tirando desta matéria a inteligência pragmática dos ingleses, que têm um sistema eleitoral que não deixa entrar mais ninguém e que ferreamente mantém os conservadores e os trabalhistas como os partidos dominantes –, se ter fragmentado. Parlamentos onde havia três partidos agora têm seis, parlamentos onde havia cinco partidos agora têm sete, parlamentos onde havia seis partidos agora têm dez. A natural consequência deste cenário: é muito difícil estabelecer a governabilidade. E quando a Europa tem dificuldades do ponto de vista da governabilidade, com a política tribalizada, obviamente atrasa-se nas decisões políticas que são fundamentais.
O terceiro ponto, já mencionado pelo Miguel [Monjardino], leva-me de novo aos europeus, que têm relutância em discutir o que é mais sério e que está à frente dos seus olhos: gostam de discutir coisas que não são prováveis, acreditar em coisas improváveis e discutir questões residuais. Numa Europa onde a fragmentação é enorme e a polarização é crescente, onde as redes sociais estão a substituir as instituições e a capturá-las, não há passado, nem há longo prazo.
De facto, o grau de toxicidade, adição, idiotia, desculpem-me a brutalidade da palavra, que é a transformação de um debate de ideias num debate de tweets traz à política, é muito severa. Há uma tendência para uma espécie de guerra civil cultural no Ocidente e nenhuma sociedade organizada pode progredir assim. Tudo isso vem da natureza da chamada democracia digital, que tem vantagens, com certeza, mas tem estas consequências: é tudo precário, é quase tudo insultuoso.
Continuando, deixem-me dizer-vos que, se este congresso estivesse a decorrer em Berlim, só haveria um tema em discussão: vai haver um conflito com a Rússia, sim ou não? Tendo esta pergunta em conta, metade da Europa, de Berlim para cima, está a pensar no escudo de defesa antiaérea, uma iniciativa alemã com mais de 14 países da Europa, mas não totalmente europeia. A pertinência da ameaça da Rússia levará os países escandinavos, os países bálticos, os antigos países de Leste e a Alemanha a avançar para a defesa sem os outros parceiros europeus, se necessário, e se os outros parceiros europeus se recusarem a participar. E, portanto, pode haver uma fratura em matéria de segurança na Europa no futuro próximo, porque quem sente a ameaça é quem está perto dela.
Há um último fator que nos leva a esta ideia de desproteção, que está precisamente em discussão neste encontro. No hemisfério norte, estamos a viver uma tripla transição. As transições são sempre difíceis e três transições ao mesmo tempo causam naturais receios. Mas estas são, de facto, inexoráveis e não dependem da nossa vontade, no sentido que se nós formos contra, não travamos a tendência. Estou a falar da transição climática, a transição energética e a transição digital. Estes três fatores, ao mesmo tempo, causam receios e perturbações.
Em relação ao momento que o mundo atravessa, queria aqui deixar ainda duas ou três notas. O primeiro risco para as eleições deste ano para a presidência dos Estados Unidos, marcadas para o próximo dia 5 de outubro. No caso de vitória de Donald Trump, haverá consequências. Uma consequência geopolítica maior e uma consequência geoeconómica previsível. A geoeconómica prende-se com uma inundação de tarifas protecionistas. Este é, portanto, um risco evidente, principalmente tendo em conta que, nos últimos anos, os drivers da globalização têm sido o comércio, a inovação e o investimento. A nível geopolítico, lembro que Trump é um isolacionista puro e duro, instintivo e muitas vezes imprevisível. Isto tem uma consequência para nós, europeus. É relativamente evidente que, se Trump ganhar as eleições, vai abandonar a Ucrânia. E se Trump abandonar a Ucrânia vai oferecer a Putin uma vitória política que ele não teve militarmente. Talvez tenha sido o pressentimento desta fraqueza que levou, como disse o Miguel [Monjardino], Putin a decidir que é agora ou já não será. Se há uma coisa que Putin sente é a fraqueza do Ocidente e a falta de vontade do Ocidente para se defender.
E se Putin prevalecer na Ucrânia, quem é que nos garante que ele não entrará nos países bálticos, também eles antigas repúblicas soviéticas? Nós também achávamos que ele não invadiria a Ucrânia. Se ele perceber que a Europa não tem defesa e que os Estados Unidos se “desengajam”, como se diz agora, da NATO, porque não? Se houver uma determinada viragem da política externa americana, o problema de Putin sobra para os europeus, que têm uma defesa incipiente. Eu queria chamar a atenção para isto porque me parece que nós poderemos vir a ter um problema com o ‘urso’ russo no futuro próximo.
Outro ponto muito importante, que é específico da Europa, é o nosso envelhecimento e a escassez da nossa inovação. O Japão é o país mais velho do mundo, mas continua a inovar. Já a Europa está a envelhecer e inova menos. Eu acho que todos vocês sabem o que significa a Europa ter uma idade mediana de 44 anos e Portugal ter uma idade mediana de 47. Nós viveremos um problema severo de falta de recursos humanos e as consequências deste quadro nos sistemas de Segurança Social, que é tão próximo ao setor segurador, são óbvias: vamos ter cada vez menos ativos para financiar um sistema de pensões que, por ser de repartição e não de capitalização, terá cada vez mais pensionistas, que vão viver muito mais anos e com melhor esperança de vida – algo que se vai refletir em muito mais anos de pensões para serem financiadas.
E uma última nota: obviamente, uma das coisas mais graves dos tempos que vivemos no Ocidente é a abreviação do conhecimento. E esta é uma maneira diplomática de falar de um mundo em que as pessoas passaram a achar que um tweet é mais importante que uma licenciatura, que um post é mais importante que um mestrado e que eu posso negar a ciência ou a fé, dois pilares da racionalidade europeia, com total descaramento em 142 caracteres. Se nós não percebermos que isto é um suicídio, acho que teremos um problema. Já Aristóteles o dizia: qual é o oposto da democracia? Não é a ditadura. É a demagogia.