A mutação do risco
O risco já não é o que era. Curiosamente, o risco – conceito determinante na missão das seguradoras –, é também matéria essencial de estudo nas lições de geopolítica e geoeconomia. Cada mudança na “balança de poder” das relações internacionais, leva consigo grandes alterações no desenvolvimento de riscos e sua abordagem conceptual, territorial, tecnológica.
No tempo da Guerra Fria, o risco político estava directamente ligado à dissuasão nuclear e à vigilância recíproca entre os blocos militares, a NATO e o Pacto de Varsóvia. O lugar mais perigoso do mundo podia ser a fronteira entre as duas Alemanhas; a Europa era o território privilegiado das tensões. Claro, houve conflitos “by proxy”, em continentes terceiros, que envolviam, habitualmente, disputa pela simpatia do chamado – lembram-se? – Terceiro Mundo.
O tempo em que vivemos é muito diferente: mais livre e, em certo sentido, menos seguro. As superpotências em competição são os EUA (incumbente) e a China (desafiante). A NATO persiste essencialmente porque a Rússia existe e é liderada por quem é, mantendo perigosas pretensões de “espaço vital”, como revelou a invasão da Ucrânia. O Ocidente dispõe de uma aliança político-militar; a ideia de Oriente não dispõe de coisa semelhante. O epicentro de gravidade económica passou brutalmente para a região Ásia Pacífico, onde os americanos têm um papel decisivo e os europeus estão longe. Acresce que a competição é essencialmente geoeconómica, porque a China, ao contrário da Rússia, modernizou, transformou, diversificou e abriu a sua economia, que antes de Deng Xiao Ping era pobre de Jó e hoje é líder global ajustada em paridades de poder de compra. Do Atlântico para o Pacífico, de Berlim para o Mar do Sul da China, da geopolítica pura e dura para uma complexidade maior, em que muitos Estados têm alianças múltiplas e variáveis (basta ver a expansão dos BRICS) ou “segmentam” as suas afinidades (a India ascendente é o melhor exemplo). E o sistema internacional que temos, em torno da ONU, é cada vez mais uma fotografia a preto e branco, de outro tempo.
O risco, se pensarmos bem, aumentou, porque é, geopolítico e geoeconómico. Em Taiwan, o que é mais inquietante: uma reunificação forçada pela coerção militar ou a concentração da produção mundial de chips na ilha mais tecnológica do planeta? É precisamente neste ponto – o da tecnologia –, que a mutação do risco se tornou vertiginosa.
Onde o poder da América é mais arrasador – a par do orçamento de defesa e do peso do dólar – é na transformação digital, que é a consequência direta do nível de inovação de que países e mercados são capazes. Onde a ascensão da China é mais impressionante é, principalmente, nas “tecnologias altamente sensíveis”. Não por acaso, a liga dos campeões da “economia da internet” é só ianque e sino. Talvez a Europa devesse ter percebido que lhe acontecera um acidente severo quando, há menos de dez anos, os chineses a superaram em percentagem do PIB aplicada na inovação.
A Inteligência Artificial somará ao digital muitas outras oportunidades, dúvidas e riscos. Aqui, EUA e China destacam-se ainda mais. É um mundo em grande medida desconhecido, sobre o qual convém não ter posições definitivas. É inegável o progresso que a IA pode trazer aos doentes, aos fármacos ou aos cuidados no envelhecimento; é inescapável que a IA pode colocar desafios sérios – na integridade académica das provas – ao ensino superior; é perplexizante que uma sentença judicial possa ser redigida pela IA generativa; a IA já é área de enorme litigância quando se aplica aos direitos de autor. Imaginem a IA em mãos erradas no domínio da política – imagem perfeitas mas falsas; discursos magníficos mas desvirtuados; factos “criados” e divulgados mas que nunca aconteceram. É todo um desafio, porque afecta a diferença entre verdade e mentira, autenticidade e manipulação. Mas é neste mundo que teremos de navegar. Conhecendo melhor os riscos, para os atenuar ou evitar. Na certeza de que é risco hoje, o que amanhã pode não ser.